Habito meu piseiro
Texto originalmente publicado na revista Mormaço. Edição 05/2025. Acesso aqui: Mormaço
A ideia de habitat (vou escrever com t mesmo) começa no Reino Animal. Lá na época em que estavam classificando tudo. Lineu, do Systema Naturae, botando ordem na botânica, nomeando ou hierarquizando os nomes dos bichos, das flores, dos seres. Lá! Nesse tempo ele escreveu onde os bichos se encontravam e deu o nome de habitat. 1735, portanto, habitat é uma ideia antiga, vai. Meio assim quase ultrapassada? As baleias habitam o oceano, os paus-brasis habitam a Mata Atlântica. Já o mosquito da dengue, esse safado, está em todo lugar, ganha na seleção natural, totalmente adaptado a qualquer e vulgar habitat. Dias atrás vi a notícia de um jabuti que viveu por dez anos debaixo do piso de uma casa, no Tocantins. Um biólogo disse ser impossível dez anos e pode ter sido menos, outro disse são seres que possuem um espectro de adaptabilidade enorme. Quero ser um jabuti. “O jabuti não tá nem aí”. Meu habitat é o habitat do jabuti? Não gosto muito da palavra habitat. Acho chique demais, específica demais, arquiteturesca demais, filosófica demais, poética demais, humana demais. Mas gosto da palavra desabitat. Esse ano faz dez anos que desabito o Cerrado. Que saí do Goiás. Como diz Gil: “O planeta se mistura”. Esse mundão-véi-sem-porteira ou que pelo menos deveria ter menos fronteiras, menos cercas, menos habitat-fixo. “Le frontiere sono muri morali” está escrito na parede em Lecce, na Itália. O Mediterrâneo, o Atlântico, a água salgada é "começo, meio e começo" das migrações, onde o mar é jornada de quem precisa se refugiar, se botar pra fora de sua terra, fugir, se desabitar por força. Um oceano para quem foge, mas deveria ser terra e hospitalidade pra quem foge. As baleias habitam o oceano. O ser humano não habita vivo um oceano. Tem alguns que não chegam. "As fronteiras são muros morais" (Analógica. Minolta X-500. Lecce, Itália)
“Corresponde colonização a uma prática de povoamento de uma região de reduzida presença de pessoas, ou em grande parte desabitada e sem desenvolvimento econômico.” Toda colonização pressupõe desabitação. Tem ninguém lá não, então podemos habitar. Num sei. Não gosto da palavra habitat. Lá! Quando o Jardim Guanabara estava se criando, setor de onde eu vim, periferia de Goiânia, o povo falava: “Aqui antes num tinha nada, só mato.” Mato é nada. Mato não habita. E deveria ter angelim de três metros de diâmetro, lobo-guará, cobras das variadas espécies, pau-fogo, onças pardas, pequi adoidado.... Tudo o que não serve ao modelo econômico passa pelo desabitado. Só que existe uma palavra melhor para habitat: Piseiro ou Pizêro. O Seu Antônio, meu vizinho, quando morávamos na beira do Rio de Contas, na Bahia, um dia me disse: “Meu piseiro é esse. Nascido e criado na beira daqui.”. Foi a primeira vez que ouvi a palavra piseiro. Eu habito onde eu piso por muito tempo e onde eu decidi pisar. Meu lugar aqui. Piseiro também é um estilo derivado do forró. E a gente dança um piseiro de João Gomes feliz-feliz. Né não? É pé no chão demais. Meu habitat é piseiro e se dança.